segunda-feira, 9 de outubro de 2006

Muitos herdeiros, fortuna pouca

Em 2 de julho de 1948, Monteiro Lobato concedia sua mais conhecida entrevista à Rádio Record. Entre irônico e um tanto reticente, Lobato lamentava apenas um fato de sua atribulada vida: "as crianças me condenam por uma coisa: que eu escrevi pouco para elas, que poderia ter escrito muito mais. Eu creio que sim. Perdi tempo escrevendo para gente grande, que é uma coisa que não vale a pena." Dois dias depois, Lobato morria de um derrame e essa sua fala derradeira, como se tivesse sido um testamento, deixou como herança um legado a quem o sucedesse - investir o próprio espírito, assim como ele o havia feito, na literatura infantil.
Passados quase 60 anos, são muitos os herdeiros de Lobato. Não há quem não o reconheça como o ancestral mais importante da produção de livros para crianças. Patriarca, influência, desbravador. A herança de Monteiro Lobato, por um lado, amplificou-se. Por outro, parece ter-se pulverizado no mercado editorial de livros infantis, cada vez mais rentável, mais produtivo e mais competitivo.
No tempo de Lobato, havia ele mesmo e uns tantos outros autores de literatura infanto-juvenil. Hoje, os livros proliferam nas prateleiras das livrarias, assim como escritores de obras para crianças. Guto Lins é um autor dessa geração pós-lobatiana, herdeiro e continuador de seu trabalho. Escreveu quase duas dezenas de livros infantis, ilustrou tantos outros e é reconhecido como um dos designers gráficos mais competentes do segmento - autor do livro Literatura infantil? - Projeto gráfico, metodologia, subjetividade, lançado em 2002 pela Editora Rosari - e professor de Design para Literatura Infantil na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Lins avalia o crescimento das demandas por livros dedicados às crianças a partir de três causas, bastante contemporâneas: o reconhecimento da criança como público-alvo do mercado da cultura, o desenvolvimento do parque gráfico brasileiro e a revisão pedagógica do papel da leitura e da própria criança. "A leitura do que seja uma criança também evoluiu muito nas últimas décadas. E o mercado editorial acompanhou essa evolução", afirma Guto Lins.
De fato, entre algumas oscilações, as editoras brasileiras encontraram no segmento infantil um mercado bastante lucrativo. Em alguns casos, a operação de todos os outros lançamentos é financiada pelo lucro dos livros dedicados às crianças. Dados da Câmara Brasileira do Livro (CBL) indicam que, entre 1994 e 2005, a média de livros infanto-juvenis lançados anualmente foi de 8,2 mil títulos e 44,6 milhões de exemplares. Em 1998, o número de títulos chegou a 14.500 e o pico de impressão aconteceu em 2002, quando as editoras despejaram 85,8 milhões de exemplares para consumo.
"A gente só entende a solidariedade se conhece a crueldade. Acho que é possível discutir com crianças assuntos que, talvez, para os adultos sejam polêmicos demais." Fernando Bonassi, autor
A euforia evidente esconde, no entanto, aspectos pouco discutidos no mercado de livros infantis: onde estão os autores, quem são e qual é a interface entre esse mercado e uma literatura que seja, de fato, articulada com os princípios estéticos e artísticos. A crítica literária Nelly Novaes Coelho, especializada em literatura infanto-juvenil, afirma que essa questão é central no debate sobre a função e qualidade desse gênero, atualmente. Professora da Universidade de São Paulo (USP) e autora do Dicionário crítico de literatura infantil / juvenil brasileira (Edusp), Nelly lembra que "toda criação literária, para chegar ao leitor, precisa transformar-se em produto comercial. E, como produto, todos parecem iguais", ressaltando que cabe às "grandes e sérias" editoras estabelecer critérios honestos de publicação. Ela ressalta que os livros infantis devem apresentar as questões mais prementes do homem na pós-modernidade: "Quem sou eu? O que estou fazendo no mundo? Qual a minha tarefa? Quem é o outro?", entre tantos questionamentos. No entanto, nem sempre isso é alcançado pela atual produção, critica a professora. "Nem tudo que existe caudalosamente no mercado editorial é literatura autêntica", afirma a professora ao recordar de um período de ouro da literatura infantil no país, entre os anos de 1970 e 80, quando viu surgir nomes da envergadura de Ruth Rocha, Mary e Eliardo França, Mirna Pinsky, Gian Calvi, Ruth Rocha e Ana Maria Machado, ícones de uma geração de autores dedicados à literatura infantil. "Naquele momento, a literatura acertou o passo com o mundo em transformação à sua volta. Surgiu uma literatura autêntica, sintonizada com as interrogações atuais, ainda em aberto", relembra Nelly.
Uma das integrantes daquela geração, Eva Furnari - ganhadora do prêmio Jabuti de Melhor Ilustração e da terceira colocação na categoria Livro Infanto-Juvenil, nesse ano, com o livro Cacoete (Ática) - começou a escrever e produzir livros infantis ainda na década de 1970 e já nos anos de 1980 era reconhecida como portadora de um discurso novo no gênero. Eva Furnari entende que, apesar do espantoso crescimento desse mercado, o livro infantil deve comportar-se como "um espaço de reflexão, no qual se condensa e transmite certas mensagens da experiência humana, não como um conselho didático, mas como reflexões sobre nossos conflitos e questões" e que a falta de qualidade em alguns títulos atualmente disponíveis se dá pela "especialização e desenvolvimento da sociedade de consumo", quando se descobriu "a criança como uma grande fatia do mercado consumidor, onde estão inseridos os livros". "É importante oferecer à criança um produto de mais qualidade estética, menos estereotipada", recomenda.
Contemporânea de Eva e igualmente premiada, Ana Maria Machado, em palestra do 2º Encontro de Formação de Leitores e Literatura Infantil, realizado em São Paulo nos dias 1 e 2 de setembro, afirmou que muito da discussão sobre a leitura se concentra na sua importância, e em uma espécie de utilitarismo dessa experiência. "A literatura é um passeio, não uma expedição comercial interessada em obter vantagens, cuja importância possa ser medida em termos utilitários para o consumo", criticou Ana Maria.
"A criança, hoje, tem um acesso restrito à arte. E o livro infantil é uma possibilidade de acesso a essa introdução artística. Os bons livros, naturalmente."
Eva Furnari, autora e ilustradora
Além de terem se transformado em objetos de consumo, os livros infantis são, ainda, eficientes ferramentas ideológicas, de educação - no bom e no mal sentido - das crianças. A essa expectativa, a de que a literatura serve para ensinar conteúdos morais, soma-se um componente que interfere diretamente no ofício do autor: muito mais que um inventor, torna-se reprodutor de um discurso que se afasta da função libertadora da literatura. "Acho insuportável essa produção de coisas edificantes. Justamente porque afasta o leitor, ele não se identifica com tanta retidão", critica Fernando Bonassi, autor de O pequeno fascista (CosacNaify), entre outros. Este livro provocou uma positiva ressonância quando foi lançado, justamente porque seu protagonista, um menino que dá nome ao livro, é o oposto daquilo que se espera das personagens da literatura dedicada às crianças. "É preciso defender a liberdade antes de defender a retidão. As pessoas precisam escolher o que é bom e não serem forçadas a escolher. A experiência da vida é muito dura. As crianças já sabem disso. Parece que só as editoras não sabem", explica Bonassi, ao justificar os temas e a abordagem de sua literatura, uma exceção entre a produção de seus colegas autores.
O critério, muitas vezes, não é mais o estético. Há, além do mercado, uma outra força de influência na produção: o governo federal, maior comprador de livros infanto-juvenis no Brasil. "O governo tem uma influência muito forte", avalia a autora e ilustradora pernambucana Rosinha Campos, "se por um lado a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) é fundamental porque orientou alguns princípios, por outro, a lei está dirigindo a produção da literatura infantil a partir desses mesmos princípios". Essa influência do governo não existe à toa: os números revelam que o investimento público na compra de livros para crianças e adolescentes, entre os anos de 1998 e 2005, ultrapassa os R$ 273 milhões. Algumas editoras de livros didáticos e paradidáticos sobrevivem exclusivamente do investimento público. Esta estrutura alterou o paradigma da produção: "Antes, os autores eram senhores do que seria publicado; hoje, o autor foi substituído pelas editoras. É como se ele tivesse perdido a força", lamenta Rosinha, que também atua na formação de novos leitores, atendendo a demanda de professores que desejam inserir a literatura no seu cotidiano escolar. "Uma hora esse mercado vai explodir, porque não há leitores para tantos títulos", prevê Rosinha.
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