Antonio Gonçalves Filho
Pela primeira vez em sua carreira o fotógrafo Sebastião Salgado fotografa uma série inteira de paisagens. Não, Salgado não decidiu enveredar pelo caminho de Ansel Adams (1902-1984), o fotógrafo americano que ficou conhecido por suas fotos panorâmicas do vale de Yosemite. Embora seja preservacionista como Adams, as fotos de paisagens de Salgado são de natureza diferente. Fazem parte de um ambicioso projeto chamado Gênesis, em que o fotógrafo brasileiro volta às origens da Terra num trabalho classificado por ele de 'antropologia planetária'. Parte dessas fotos está exposta no Museu de Artes e Ofícios de Belo Horizonte, numa mostra bancada pela Arcelor Brasil (Belgo, CST e Vega do Sul) com chancela da Unesco.
De passagem pelo Brasil, vindo de Kamchatka, a grande península russa do leste, Salgado concedeu uma entrevista exclusiva ao Estado. Sobre o projeto Gênesis, com duração prevista de oito anos, o fotógrafo esclarece que essa longa viagem só vai se tornar viável graças ao apoio de jornais e revistas europeus (Guardian, La Repubblica, Vanguardia, Paris Match) e companhias americanas, além da CST-Arcelor Brasil. Esse consórcio cobre os gastos das longas expedições por lugares onde poucos homens colocaram seus pés. Além de fotografar os vulcões de Kamchatka, Salgado esteve, no ano passado, no Himalaia e no deserto da Namíbia. Este ano ele explora as regiões glaciais da Argentina e Chile, partindo depois para a Antártida. Terá como companheiro de viagem o navegador Amyr Klink.
Mineiro de 62 anos, Salgado construiu sua reputação como fotógrafo dos deserdados do mundo. Há dois anos, por iniciativa da agência fotográfica Amazon Images, dirigida por sua mulher Lélia Deluiz Wanick Salgado, ambos decidiram mostrar os paraísos intocados que garantem a biodiversidade do planeta. Com a colaboração de um programa das Nações Unidas para o meio ambiente, Salgado deu início ao projeto Gênesis, que vai registrar os bons frutos do vínculo entre homem e natureza, no contrafluxo da degradação ambiental provocada por essa mesma relação no meio urbano.
Dividindo o projeto em quatro blocos temáticos (Criação, Arca de Noé, Homem Antigo e Sociedade Antiga), Salgado fotografou desde paisagens ancestrais até comunidades que evocam os primórdios da civilização, passando por animais pouco vistos e indígenas que mantêm suas culturas e tradições, do Congo ao Xingu.
Salgado diz que não vê ruptura entre esse projeto educacional, vinculado ao ensino de questões ambientais a jovens alunos, e a longa pesquisa fotográfica que deu origem às séries anteriores, todas transformadas em livros, como Outras Américas, Sahel: L'Homme en Detrésse, Trabalhadores e Êxodos. 'Esse projeto chama-se Gênesis porque, além de retornar à origem do planeta, pretendo mostrar que ainda é possível a integração homem-natureza, apesar das previsões catastróficas.' Assim, não se trata de uma reportagem sobre aquecimento global, destruição das florestas ou as conseqüências da fome endêmica. São imagens elegíacas, em que a pata de um iguana surge numa dimensão fenomenológica, como uma revelação teofânica.
'Essa foto provocou uma série de interpretações interessantes dos alunos das escolas públicas do Espírito Santo, onde 187 estabelecimentos receberam kits com imagens captadas nas Ilhas Galápagos', conta Salgado, animado com a possibilidade de transferir aos pequenos uma dose de esperança sobre a salvação das 25 principais regiões ecológicas do mundo, os chamados 'hotspots', responsáveis por mais da metade de espécies do planeta. Apesar de todo o estrago provocado no meio ambiente, ainda existem áreas selvagens que podem religar a espécie ao planeta, diz, observando que seu interesse pelas comunidades indígenas transcende a curiosidade antropológica. 'Acho que eles vão nos ensinar como preservar a vida na Terra, pois há séculos protegem o lugar onde vivem.'
Salgado fundou com a mulher o Instituto Terra, que oferece educação ambiental a autoridades municipais, professores e proprietários rurais. Começou com a área de 675 hectares pertencente ao casal, reflorestada com espécies nativas da Mata Atlântica. Isso explica a natureza pedagógica do projeto Gênesis, que ainda vai levar o fotógrafo ao Ártico, ao deserto mexicano, às montanhas do Canadá, ao Alasca e a lugares remotos da China e EUA.
Embora a terra de Ansel Adams esteja no roteiro, Salgado não vai fotografar Yosemite ou Sierra Nevada, mas regiões desérticas. O fotógrafo brasileiro diz que suas paisagens são em tudo diferentes das do mestre americano. 'Eu não trabalho com o mesmo material', diz, informando que trocou o formato 35 milímetros por negativos de 6 x 4,5. A diferença não está só aí. O aspecto formal - todas as fotos são em preto-e-branco, favorecendo a abstração e a interpretação do espectador - continua em pauta, mas é subordinado a um projeto de reportagem em que o próprio Salgado parte para experiências inéditas como as de fotografar os outros animais do planeta sem um olhar antropocêntrico. Ele explica: quer 'encontrar' esses animais, entendê-los como compreende a própria família.
Depois de viver nas Ilhas Galápagos em meio a tartarugas gigantescas e iguanas antediluvianos, Salgado teve outra experiência inaudita a 4 mil metros de altura, na cordilheira asiática do Himalaia. No planalto que reúne as montanhas mais altas do mundo, o fotógrafo subiu uma delas com mais de 30 mulas carregando equipamentos e alimentos. Nessa peregrinação Salgado já conheceu mais de uma centena de países desde que decidiu, aos 59 anos, rastrear espécies e povos nômades pelo globo terrestre.